“Hoje temos sucessos mais efêmeros”, diz jornalista e pesquisador

Rodrigo Faour passou a colecionar discos e documentos sobre os artistas que mais gostava

Publicado domingo, 29 de janeiro de 2023 às 06:00 h | Autor: Vinícius Marques
Interesse rendeu biografias de artistas como Cauby Peixoto, Claudete Soares, Dolores Duran e Ângela Maria
Interesse rendeu biografias de artistas como Cauby Peixoto, Claudete Soares, Dolores Duran e Ângela Maria -

Desde pequeno, Rodrigo Faour tinha o interesse em guardar coisas diversas. Conforme foi crescendo, passou a colecionar discos e documentos sobre os artistas que mais gostava, depois até dos que não gostava tanto assim. Quando iniciou a carreira no jornalismo, passou a conhecer uma música de um tempo anterior ao dele, uma música que vinha antes da Bossa Nova, e então passou a colecionar um pouco disso também.

O interesse rendeu biografias de artistas como Cauby Peixoto, Claudete Soares, Dolores Duran, Ângela Maria e o livro A história sexual da MPB. Quando passou a dar aulas sobre história da música brasileira, sentiu falta de livros que abordassem com mais detalhes outros artistas e gêneros que não foram muito bem documentados, e então escreveu a História da Música Popular Brasileira Sem Preconceitos, Volumes 1 e 2 (Ed. Record), que lançou na última semana em Salvador. Nesta entrevista, o jornalista, memorialista e pesquisador carioca fala sobre o processo de construção do livro, a evolução da música brasileira, o destaque da música baiana e as novas formas de consumo.

O livro possui um tom enciclopédico, trazendo um grande panorama dessa pluralidade musical existente no Brasil. Quais dificuldades encontrou ao catalogar cada aspecto dos inúmeros gêneros musicais e seus personagens?

Todas as dificuldades. Porque foi a coisa mais louca que eu já fiz e farei. Eu tenho certeza que nada do que eu fizer na minha carreira vai ser tão trabalhoso quanto isso que fiz. É um pouco de pretensão, mas ao mesmo tempo alguém tinha que fazer o serviço sujo. Na verdade, eu achava que ia ser mais simples no começo.

Quando chegou nos anos 1990, vi que o negócio era muito mais complexo do que eu imaginava. Dos anos 1990 para cá, eu mergulhei muito no passado e comecei justamente a trabalhar com jornalista, memorialista e pesquisador, e fiquei um pouco à margem da parada de sucesso geral, mais concentrado nas minhas pesquisas, no meu gosto pessoal, e não tinha ideia da quantidade de artistas surgidos na música brasileira em todas as regiões do Brasil nos últimos 30 anos.

Tanto que eu achei que fosse possível fazer um volume só, mas com o CD, já triplicou o número de artistas, e com a internet quintuplicou. Então, hoje temos sucessos mais efêmeros, às vezes de um mês, dois meses. Artistas que não ficam, às vezes, muito tempo em destaque, porque já vem outro que substitui, mas você não pode ignorar isso. Isso vale para o funk, hip hop, forró eletrônico, piseiro, para esses gêneros mais para cá. É uma loucura, é muita, muita, muita gente. Convenci a editora a fazer dois volumes, porque realmente seria impossível.

Para você ter uma ideia, o último livro mais legal que fizeram sobre isso foi do meu querido amigo e mestre Jairo Severiano. Ele tinha feito um livro em 2007 muito interessante, só que dos anos 1970 para cá acho que tinha 25 páginas ou 30, no máximo. Dos anos 1970 para cá, eu escrevi um livro inteiro de 600 e poucas páginas mais dois capítulos do outro. Para você ver a quantidade de gente.

Tudo que não era valorizado naquela época, hoje é supervalorizado. Se você pensar bem, a música massificada que a gente tem no Brasil hoje, ela é bastante brega e bastante internacionalizada. Bastante globalizada, muito americanizada, como sempre teve, mas agora mais do que nunca. Ela tem essa influência do eletrônico muito forte, tem uma pegada também do pop internacional muito forte e muito brega. São as duas coisas que a crítica mais odiava no passado. São essas contradições, são essas coisas todas que você pode não concordar, mas você não pode jogar isso para o lixo da história, botar isso debaixo do tapete.

No livro há um destaque sobre o patrulhamento estético que a música rotulada como brega sofria em dias passados. Você acha que evoluímos nesse debate?

Com certeza. Tanto evoluímos nesse debate que hoje a música consumida em larga escala em todos os níveis da sociedade é essa. É uma música que tem sempre um componente um pouco brega, se você pensar friamente. Boa parte do sertanejo, do piseiro, do forró eletrônico é muito forte no Nordeste, e mesmo músicas românticas em geral, para fazer sucesso, têm sempre um componente meio brega. É difícil a música que não tem esse componente. É uma palavra também que já deixou de ser uma palavra pejorativa, em Pernambuco mesmo já tem um gênero que os artistas se autointitulam de brega. Então, isso já é superado, tanto é superado que já virou mesmo o nome de um de um gênero que os próprios artistas se autoproclamam, e ainda tem o brega funk, que é uma mistura de um com o outro.

Agora, o que eu acho que a gente precisa fazer é o contrário. É um resgate de uma música mais elaborada para as paradas de sucesso. Eu acho que o equilíbrio é que é o legal, porque também sinto falta de uma música um pouco mais adulta, com um pouquinho mais de profundidade, de sensibilidade. Eu sinto falta.

E há um epílogo nesse livro que fala um pouco dessas transformações muito grandes na produção, na gravação e na divulgação da música contemporânea que acaba desfavorecendo artistas de outras vertentes, que não sejam as mais massificadas, emergirem. A internet realmente é uma faca de dois gumes, ela democratizou, mas ao mesmo tempo, a internet de 20 anos atrás já é diferente da internet de hoje, aliás, a de 10 anos atrás já é diferente da de hoje, ela hoje é mais perversa.

Surgiram muitas cantoras de pagodão baiano e outros gêneros que pregam o empoderamento feminino em suas letras. Você acredita que isso seja um reflexo dessas leis “anti-baixaria” e dos debates sobre o tema que foram construídos nos últimos anos?

Olha, com o funk aconteceu uma coisa bem parecida no Rio. Os primeiros funks tinham algumas coisas que quando se falava de sexo era uma coisa sempre da ótica masculina, aí quando veio a Tati Quebra Barraco e depois a Valesca, elas já provocavam. Já era o outro lado, entende? Então, ficou mais equilibrado, porque foi uma coisa natural que foi surgindo. As mulheres foram botando as manguinhas de fora e ficou uma coisa mais equilibrada.

Eu acho que isso é um movimento natural, já que também na música baiana tem essa parte muito forte, desde a época da Companhia do Pagode, do É o Tchan, dessas músicas muito lascivas, é natural que uma hora aparecesse alguma coisa da ótica feminina, isso é a sociedade e a arte que acabam dando um jeito de compensar.

No volume 2 do novo livro, você aborda bastante a história da música baiana. Desde a Bossa Nova, a Tropicália e os Doces Bárbaros. Há alguns anos, a revista Rolling Stone Brasil elegeu o álbum Acabou Chorare, dos Novos Baianos, como o maior disco brasileiro de todos os tempos. É possível dimensionar o impacto que a música que foi e ainda é feita na Bahia causou na música que é produzida no resto do país?

Sem dúvida nenhuma, a música do Rio e da Bahia foram as músicas que mais se alastraram nacionalmente, isso eu não tenho a menor dúvida. Mesmo quando o centro cultural era o Rio de Janeiro, a gente já tinha artistas baianos ou que falavam da Bahia, que foi algo que impregnou muito o imaginário coletivo do Rio e do país. A gente já tinha artistas como o poeta Gregório de Mattos; Xisto Bahia; Ary Barroso, mineiro, que começou a botar a Bahia nas letras dele em músicas gravadas até internacionalmente, como é o caso de Na Baixa do Sapateiro.

Foi um hit internacional na década de 1930. Depois, a Carmen Miranda tornou a baiana internacional, por conta de Dorival Caymmi. Foi graças primeiro a Ary Barroso, depois a Caymmi, que a Bahia virou um símbolo de brasilidade internacional. É uma quantidade de baianos fantástica. Por isso tem aquela história de que o baiano não nasce, estreia. A Bahia tem uma importância muito grande na história da música brasileira, só comparável mesmo com a do Rio.

Você também dá destaque para a massificação da música feita para entretenimento, iniciado nos anos 1990, com gravadoras investindo mais em gêneros, como a axé music, do que em artistas individuais. Hoje em dia, com produtos como o TikTok e o streaming, isso ainda é perpetuado pelas gravadoras?

Elas ainda fazem parte do jogo, mas agora é um jogo mais complexo. Fiz um estudo muito grande entrevistando diretores de gravadoras, divulgadores, marqueteiros e a experiência de alguns próprios artistas amigos. Dez anos atrás, você conseguia no YouTube, num vídeo, viralizar uma música inteira, não um pedacinho que se dança, mas uma música inteira virar um grande sucesso e começar a despertar o interesse de uma gravadora, que contratava o artista e o cara virava um grande sucesso mesmo.

Hoje, isso é mais difícil por causa do algoritmo. Hoje em dia, se você também não tem muito dinheiro, fica difícil de realmente emplacar naturalmente colocando um vídeo no YouTube, por exemplo. Hoje você consagra trechinhos de música no TikTok, tudo bem, aquilo é muito efêmero, daqui a pouco vai embora. Hoje é tudo mais complicado e ainda tem a questão do sertanejo, tem a ver com agronegócio, tem a ver com outros interesses.

É tudo muito imagético e com muito apelo sexual também. O funk, por exemplo, seja do Rio ou São Paulo, o brega funk, tudo tem um apelo imagético e também sexual e juvenil muito forte. Se alguém quer fazer uma música que fuja de uma estrutura dessa,  ou uma música pop  até meio careta, digamos, é muito difícil. Não vou citar nomes, mas tem algumas boas cantoras que, enquanto não rebolaram, diminuíram o tamanho da calça, não aconteceram.

É uma estrutura bem perversa, e não tô falando isso com moralismo, eu estou falando porque eu pelo menos sou de uma geração que conseguia consumir de tudo pela televisão. Hoje, se você ligar o rádio, no máximo você vai ter flashbacks, vai ter músicas antigas já consagradas em alguns horários. Agora, ouvir novos lançamentos de artistas novos com músicas que fujam desse padrão massificado é difícil. E na TV também o espaço para música diminuiu muito também.

E quando tem são essas coisas mais populares, são essas coisas mais fáceis, que você tem um tempo mais fácil de assimilação. A estrutura do mercado contemporâneo – não que em outras épocas fosse um mar de rosas –, ficou cada vez mais perversa, a meu ver.

Hoje em dia, a música tem ganhado novos protagonistas como Pabllo Vittar, Gloria Groove, Linn da Quebrada e Liniker, que colocam suas vivências enquanto pessoas LGBTQIA+ em suas letras e caem no gosto popular. Na última semana, inclusive, um tema sobre essas cantoras foi destaque numa prova da Polícia Militar da Bahia. Você acha que houve mudanças estruturais na indústria que permitiram a entrada dessas artistas no mainstream ou foi um simples caso de mudança no consumo e mentalidade da população?

Isso sim é uma raridade no meio disso tudo, mas ainda acho que é uma música de nicho. Pabllo ainda conseguiu sair mais, mas eu não sei se você chegar para sua mãe e perguntar se ela sabe cantar uma música da Liniker... será que ela sabe? Como antigamente todo mundo sabia cantar um Deixa a Vida Me Levar, do Zeca Pagodinho. Tem pessoas que ficaram mais famosas até como celebridades do que pela música em si.

Existe um nicho de público jovem, principalmente os LGBT, que conhecem bem, mas a gente não sabe até que ponto isso é um fenômeno que vai de norte a sul, de leste a oeste, todas as idades. Eu acho que elas estão indo muito bem. Era uma coisa que estava reprimida por tantos e tantos anos e veio tão forte agora que conseguiu furar esse bloqueio. São grandes figuras que conseguiram furar uma parte bem perversa do mercado. Eu tiro todo o meu chapéu para essa geração.

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