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Crônica: um carro cheio de encanto

Confira crônica da edição mais recente da revista Muito

Publicado domingo, 05 de fevereiro de 2023 às 07:00 h | Autor: Franklin Carvalho
Imagem ilustrativa da imagem Crônica: um carro cheio de encanto
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Nem claro era quando eu cheguei hoje na feira, para tomar café, e ouvi falarem o seu nome. Na barraca da Branca se ajuntaram os peões para fugir da garoa e dane-se a comentar desse carro que o Cinésio lhe vendeu, e que parece estar carregado de sortilégios. Sim, pelo que disseram hoje cedo, a Marlene, mulher do Cinésio, é das artes cruzadas, e se envolveu ontem mesmo numa contenda que prova isso. Os feirantes e carregadores mastigavam a história, que no geral se afigura assim:

Na tarde de ontem o delegado chamou a Marlene porque Jó Curador, raizeiro, tinha dado queixa contra ela, por calote. Segundo Jó, Marlene havia lhe encomendado um serviço das Forças para o marido Cinésio negociar um automóvel antigo, recebido de herança familiar. Havia tempo que ela e o esposo pelejavam para passar adiante o veículo, um Opala meio conservado, meio avariado, e não achavam comprador. Parece que a mulher já é envolvida há tempos com as coisas místicas e resolveu novamente movimentar as famílias dos invisíveis para limpar os caminhos.

Acontece que, para a mesma demanda, Marlene já havia procurado primeiro a velha Mãe Cissa, da Cascalheira, e depois, desesperada com a demora, foi ao Jó Curador, e ainda inquietou mais gente que opera com as duas mãos. Ao fim e ao cabo, o marido dela finalmente vendeu o Opala a você, meu irmão, que é bom pagador e adquiriu o veículo a preço honesto. E o carro não está assim tão ruim, anda na rua e no barro e ainda suporta alguma reforma.

Mas, voltando à contenda da delegacia, o Jó Curador deu parte porque a Marlene não tinha pagado o trabalho conforme se combinaram. Ela admitia o trato, mas jurava que o sucesso do negócio se devia a Mãe Cissa, e garantiu haver remunerado a velha.

O delegado quis ouvir mais gente, e até cogitou lhe chamar, a você, comprador, para dar opinião, mas Jó e Marlene pediram que o poupasse, e propuseram convocar a velha mãe da Cascalheira.

Mandaram buscar a Mãe Cissa, coitada, mulher idosa e serena, uma desfeita levar aquela senhora num ambiente de cizânia como a cadeia pública. E a pobre só confirmou que fez sim tratamento espiritual com a Marlene. Falou isso em um minuto e o resto ficou calada. A Marlene já ria aliviada, se achando dispensada, mas ainda teve que pagar pelos seus excessos.

Como o delegado é homem novo, desses que gosta de ficar explicando a lei para as pessoas, disse em alto e bom som que a mulher do Cinésio tinha contratado um serviço, que o dito serviço ela reconhecia cumprido, mesmo sendo um favor mágico, e que ela, a Marlene, não tinha perícia para estabelecer cotas de participação nos lucros. Partindo desses princípios, obrigou a infeliz a pagar ao Jó, apesar dos impropérios e das caretas dela.

Eu quis vir aqui logo que soube do buchicho, de manhã, mas só agora tive tempo. Queria lhe comunicar, porque me preocupo com essas histórias de ventos enviesados e energias carregadas. No entanto, como o carro lhe foi repassado a dinheiro, bem certo está lavado de qualquer magnetismo, porque o dinheiro é líquido igual à água, que flui e faz fluir.

Sei, enfim, que três pessoas não dormiram bem a noite passada: a Marlene, com ódio, o delegado, com medo, e eu, que já não durmo bem a vida toda, e saio cedo de casa para ouvir as resenhas do povo.

*A partir de queixa policial citada por Nivio Ramos Sales no livro Prova de Fogo.

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